15 de jan. de 2022

Eu sou saroba!


Por Mestra Brisa e Mestre Jean Pangolin

A expressão "saroba", em capoeira, ganhou força por volta da década de 90, protagonizada por alguns integrantes da chamada "contemporânea", fazendo alusão a uma forma de expressão da capoeiragem “menos desenvolvida”, ineficiente e com traços exóticos, ou seja, algo bem inferior a "modernidade" exposta no discurso de alguns mega-grupos e seus dirigentes. Desta forma, trataremos a seguir sobre as nuances que implicam o referido rótulo preconceituoso e suas mensagens subliminares, não-ditas mas presentes.

Inicialmente se faz necessário identificar quem seriam os tais capoeiras sarobas, pois, salvo engano, a impressão que fica é que todos aqueles fora do perfil da capoeira "contemporânea", com sua estética linheira e “clean”, são sarobeiros. Vixe, agora lascou tudo! Porque segundo a filosofia dos próprios criadores deste falso conceito, os "contemporâneos" só existem pela significativa contribuição de todos aqueles que os antecederam, ou seja, a capoeira "contemporânea" é filha da capoeira "saroba" (Luta Regional Baiana, Angola, de rua, primitiva, ou como queiram denominar)... Ai ai ai ai ai! Temos então, no mínimo, um conflito de filha desrespeitosa com sua mãe... QUE MALCRIADA ESSA TAL MENINA CONTEMPORÂNEA, hein?!

Outro detalhe que possivelmente caracterizaria uma inversão de valores é que quanto mais parecido eu for com os antigos mestres, maior será a probabilidade de que eu seja adjetivado como um sarobeiro. Neste sentido, podemos perceber uma ruptura altamente perigosa com uma base estrutural da arte capoeira, a ancestralidade, pois, sem a referência dos que me antecederam não existirá sustentação para manutenção e desenvolvimento das culturas populares.

Há anos escutei do mestre Moraes algo que dizia que a capoeira é a “forma sem forma”, isso me deu pistas para buscar estruturar minha capoeira em outras bases, e banir de mim qualquer forma que desejasse engessar minha movimentação. A estética linear, linheira e “clean”, me lembra muito os processo de produção em série de um projeto histórico de sociedade que precisa de padrões e homogenia para garantir o lucro de poucos e a miséria da maioria. E nesta confusão, o capoeira se rendeu aos ditames da igualdade, por ignorar o conceito de equidade, impondo aos diferentes a mesma ginga, a mesma expressão corporal, o mesmo balanço..., fortalecendo a premissa da produção em série do “Capoeira Xerox”, negligenciando o princípio do corpo transgressor e subversivo que fundamenta a capoeiragem. 
"Ninguém joga do meu jeito ", dizia Mestre Pastinha em sua singular sabedoria, o que significa dizer, segundo mestre Moraes, que “na Capoeira o belo e o feio se confundem com o objetivo de criar arte sem fragmentá-la”.

A obra "O Pequeno Príncipe" diz que: "Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós". Assim, eu sou a soma de todos aqueles que convivi e convivo, bem como todos os que conviveram com eles, pois, a partir deles chegaram até mim... Eu sou a sabedoria do mestre Decânio, ou do velho “Deca” como me permitia lhe chamar; a ginga de João, o grande mestre João Pequeno de Pastinha; o olhar do mestre João Grande; as conversas com o mestre Mário Bom Cabrito; os eventos no Km 17 com o mestre Paulo dos Anjos; as viagens com o mestre Eziquiel; o abraço bom em mestre Joel; o balanço de mestre Bobó do Dique; o jogo engenhoso em Itapoan, no Rio Vermelho e na Pituba com mestre Bozó Preto; o toque de berimbau de mestre Gigante; a bananeira, no ponto do ônibus, de mestre Di Mola; a diplomacia de mestre Demerval Formiga; o sorriso de meste Neco na ABCA; a vitalidade de mestre Boinha na FUMEB; eu sou estes e tantos outros que coabitam em mim e se manifestam no meneio de minha corporeidade em capoeira. 

Para finalizar, trazer o conceito de Sankofa, onde “Sanko” significa voltar e “fa” significa buscar/trazer. Originário de um provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim, Sankofa ensinaria a possibilidade de voltar atrás, às nossas raízes, para poder realizar nosso potencial para avançar. Neste sentido, se sou "saroba", todos estes baluartes consagrados são sarobeiros como eu... Imagine então, a honra de ser saroba! Aos “desavisados” que usam inadvertida e preconceituosamente a palavra, fica a dica:
“Eu vim de lá, foi a Bahia quem mandou
Eu vim de lá, foi a Bahia quem mandou
Quem quiser saber meu nome, ai meu Deus
O meu nome é capoeira, ai meu Deus
Você está facilitando, 
Está pra receber...
Uma galinha pulando 
Você está pra receber...
Uma galinha pulando”

 Axé!

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Ouça Eu sou Saroba! de Mestra Brisa _ Carol Magalhães no #SoundCloud
https://soundcloud.app.goo.gl/Y6FA3

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